Radio Diaspora
‘Negro Humor’
digital, 2021

Radio Diaspora 'Negro Humor' digital, 2021 Brava Edição #18

Radio Diaspora ‘Negro Humor’
digital, 2021
Brava Edição #18

Wagner Ramos – bateria, Sampler Roland SP-404 SX, Wavedrum Korg, SPD-ONE Wavepad, ‎Minimoog Model D Synthesizer
Romulo Alexis – trompete, boquilha, shenai, gaita marroquina, pedais, agogô, caxixi

Gravado, mixado e masterizado por Igor Souza no Estúdio Mitra /SP, na Primavera de 2020

Capa por Priscila Tâmara e Rodrigo Sommer

O duo de free jazz experimental composto por Wagner Ramos (bateria, eletrônicos) e Romulo Alexis (sopros e eletrônicos) lança seu décimo álbum, ‘Negro Humor’, onde investiga a dicotomia do humor para novamente fazer reverberar por meio da música sua luta contra a violência física e simbólica sofrida pela população negra.

O humor como faceta da tristeza. A gargalhada como opressão simbólica, ressaltando a contradição de uma sociedade que, ao tratar com aprazimento chacotas racistas, reconhece e reafirma com leveza a brutalidade do discurso dominante.

A música que dá nome ao disco, ‘Negro Humor’, traz exatamente essa provocação, por meio de um sample com a fala do ator Grande Otelo. O consagrado artista negro ressalta o contrassenso do palhaço, que desperta em todos a alegria, mas é uma figura extremamente triste e solitária, ridicularizando a si mesmo e se colocando nas mais constrangedoras situações. Na plateia, o riso largo e aliviado das pessoas por não serem elas os alvos do escárnio.

Em ‘Despacho’, Radio Diaspora explora a incongruência da sociedade ao introduzir uma fala do advogado Hédio Silva Júnior, mestre em Direito pela PUC-SP e advogado das Religiões Afro-brasileiras no STF. Ele questiona sobre uma norma em discussão no Congresso visando proibir o uso de galinhas nos terreiros de candomblé e umbanda. Silva Júnior aponta que para proteger os direitos dos animais todos se prontificam, mas para defender a vida dos jovens negros e periféricos não existe a mesma mobilização.

Ainda explorando a temática das religiões de matriz africana, RD apresenta a faixa ‘Meia-Noite’, introduzindo um sample do ponto de umbanda “Sino da Igrejinha”, presente na música “Festa de Umbanda”, do disco “Martinho da Vila, 1974” do grande sambista carioca.

Com samples de ícones norte-amercianos, as outras músicas estão divididas em duas partes: duas delas trazem como provocação, em meio às dissonâncias sonoras, trechos de discursos do líder negro estadunidense Malcom X, e outras duas, trechos de famosas entrevistas concedidas pelo pugilista e ativista negro estadunidense Muhammad Ali.

O ex-atleta conta de forma muito irônica os questionamentos que fazia quando criança à sua mãe, do motivo de todas as coisas boas e positivas serem associadas ao branco. “Mãe, por que tudo sempre é branco? Por que Jesus é branco, com olhos azuis? Anjos são brancos, o Papa é branco. Quando morrermos vamos para o céu? E ela respondia que sim. Então, perguntava, então o que aconteceu com todos os anjos negros que eles retiraram das fotos e pinturas?”. Sua indagação, no entanto, é vista como piada pela plateia branca presente ao programa de TV, que trata com leviandade a crítica sarcástica feita por Ali. 

Priscila Tâmara e Rodrigo Sommer desenvolveram também um poster, baseado na capa que o casal criou para o ‘Negro Humor‘.

São apenas 20 cópias do cartaz cuidadosamente desenvolvido de forma artesanal especialmente para acompanhar o lançamento deste álbum, no formato 42x59cm, com impressão manual em 2 cores pelo processo de stencil com tinta serigráfica, sobre papel Color Plus Azul Toronto 180g.

Sobre processo de desenvolvimento do poster:

Quando o Rômulo Alexis nos fez o convite para fazermos a capa do disco da Rádio Diáspora e disse que o nome seria Negro Humor, antes mesmo dele explicar essa escolha, me veio a lembrança do sorriso dos povos do continente africano e, em seguida, uma frase que minha mãe disse (sem romantizar) em uma conversa que tivemos há alguns anos: “É impressionante como os negros estão sempre sorrindo, mesmo sentindo dor.” Na explicação do Rômulo, era o contrário disso.

Durante a semana, antes de ouvir o disco, comecei a pesquisar sobre a origem da palavra “humor negro” e me deparei com a história daquele desenho famoso, “Jim Crow”. O personagem era uma comparação pejorativa do corpo negro com o corvo. Dizem que é bem provável que o nome tenha vindo da música “Jump Jim Crow” interpretada pelo ator Thomas D. Rice, em 1832, com a face pintada de preto (blackface). Eu até conhecia essa história, mas não sabia que virou uma lei, e que esta impunha a segregação racial no sul dos Estados Unidos no período entre 1877 e 1964. Nessa pesquisa lembrei de uma história que uma pessoa me contou, sobre a importância do corvo na espiritualidade, e que ela disse que até viajou para outro país para tentar pegar uma pena de corvo, mas não conseguiu. Encontrei várias simbologias bonitas do corvo em outros países, bem diferentes dessa dos EUA.

Mudei o foco da pesquisa após ouvir o disco e me sentir incomodada com a repetição das palavras de umas das faixas, pensando no sentido de ter as palavras reprimidas, porque o racismo nos silencia o tempo todo. Eu até comentei com o Rômulo que na maioria das vezes em que sofremos o racismo, a voz não sai, e em resposta a isso, ele falou: “o som (do disco) é para exorcizar o racismo da nossa mente e deixar a gente pronto pra agir”. Fiquei com essa fala martelando na minha cabeça por alguns dias e senti que uma das referências seriam essas palavras.

Peguei todo o acervo de meus estudos dos símbolos dos tecidos do continente africano, coloquei em cima da mesa, e sentamos, o Sommer e eu, para ouvir o disco. Ouvimos em silêncio e ao final do som, começamos a conversar e a escrever e esboçar as ideias no papel. Nesse momento, não estava me sentindo à vontade de desenhar ali, na companhia dele, não por sua presença, mas porque senti um bloqueio, do tipo “estou criando uma arte com uma pessoa que trabalha com design há mais de 20 anos, será que vou conseguir?”

No dia seguinte nos reunimos novamente, colocamos o disco para ouvir de novo e voltamos a desenhar e a trocar ideias. Pra mim, o disco passa muito a ideia de oralidade, como nos cultos das religiões de matriz africana, em que, a meu ver, as palavras têm mais “importância”, de certa forma, do que a escrita. Essa foi uma das coisas que também me chamou a atenção.

Como o Sommer havia trabalhado a semana inteira até tarde para dar conta das entregas de trabalhos e poder dar a atenção que a capa merecia, ele resolveu ir deitar um pouco para descansar e me deixou desenhando. Me concentrei por alguns minutos e me lembrei da primeira imagem que me veio à cabeça logo que ouvi o nome do disco, lembrei da conversa que tive com o Rômulo e das referências que estavam sobre a mesa. Nesse momento o som do Tim Maia que estava tocando do outro lado da rua no último volume foi diminuindo até ficar tudo em silêncio, e eu senti uma paz absoluta. A sensação era como se eu tivesse entrado em contato com a minha ancestralidade, com algo além da minha presença ali, porque aquele desconforto de fazer uma arte com uma pessoa experiente ao meu lado havia sumido. Comecei então a desenhar e pintar com lápis de cor, algo que sempre tive dificuldade, desde a infância. Sommer chegou no estúdio na hora em que eu havia terminado um desenho. Expliquei para ele cada elemento, e então entendemos que a capa precisava mesmo de uma roupa, de estar vestida para – repetindo a frase do Rômulo – exorcizar o racismo e deixar a gente pronto pra agir, da mesma forma que, em alguns países do continente africano, os tecidos eram vestidos em cerimônias importantes.

Seguindo esse pensamento, a capa teve como inspiração as cores do azul índigo e do tecido natural do Adire Eleko, feito pelos povos Iorubá na Nigéria, e também a releitura dos símbolos do Bogolàn, feito em Mali. Os símbolos do Adire são pintados com goma de mandioca no tecido de algodão, que depois é tingido com a planta índigo. Já os símbolos do Bogolàn são pintados no tecido de algodão com pigmentos extraídos das plantas e com óxido de ferro da terra, que a medida em que permanece guardada por dias, meses ou anos, oxida e vai criando variações de tons, do mais claro para o mais escuro. Em ambos os tecidos, os povos africanos narram suas histórias de vida por meio de símbolos, assim como Negro Humor recebeu um símbolo representando cada faixa, criando uma narrativa que atravessa o disco.

O símbolo localizado na parte superior esquerda, repetido em 4 diferentes posições, corresponde à faixa 4 (Negro Humor): são conjuntos de semicírculos que simbolizam um palhaço triste (o ator Grande Otelo). Na parte inferior esquerda está o símbolo do lagarto, que representa força na cultura Iorubá e que incorpora o líder negro norteamericano Malcom X, nas faixas 5 (A.H.M. AL-SHABAZ.1) e 6 (A.H.M. AL-SHABAZ.2). Abaixo do lagarto há uma releitura de dois símbolos Yoruba – os dois triângulos que representam vasos, que significam vida, e o círculo preenchido entre eles, símbolo do ponto de força – que representa as faixas 2 (Mohamad Ali 1) e 3 (Mohamad Ali 2). À direita deles, a faixa 1 (Despacho) é representada por uma dupla de símbolos que se repetem verticalmente: o “Y” é a pata da galinha – o caminhar – e o triângulo espelhado, o tambor – a batida ritimada. Esses dois símbolos correspondem ao protesto do advogado Hélio Silva Junior, que no julgamento sobre a legalidade do sacrifício de animais em rituais e cultos das religiões de matriz africana, declara: “A vida de uma galinha da macumba vale mais do que a de jovens negros”. A faixa 7 (Meia-noite) é representada pelas fases da Lua, uma sequência de círculos e semicírculos preenchidos, e pelo galo, representado por um triângulo e um semicírculo na vertical.

O título NEGRO HUMOR é aplicado sobre a arte, de forma repetida, cobrindo parte tanto dos símbolos quanto do tecido e criando, de maneira análoga ao trabalho do duo no disco, uma série de ruídos e sobreposições que acabam construindo um ritmo visual, não linear como o as composições do disco – nas quais a parte instrumental e os recortes vocais, em repetição constante, ficam em uma disputa dinâmica em que ora um, ora a outra, ganham o protagonismo. Sommer criou a tipografia a partir do vazio deixado pelo desenho das letras, tentando de alguma maneira suprimir os símbolos da linguagem escrita, historicamente utilizada pelo branco europeu como argumento para a desvalorização da cultura dos povos do continente africano e seus descendentes, caracterizada pela oralidade, e simbolicamente ocupar esses vazios com um outro discurso.

Priscila Tâmara
31/03/2021