O conceito de mitose, na biologia, refere-se ao processo de divisão de uma célula em duas. Embora possuindo diversos aspectos semelhantes, as duas células geradas dessa divisão não são idênticas, trazendo particularidades em suas constituições individuais, ainda mais distintas em nível subatômico.
Tendo os ritmos como células simples, neste projeto utilizamos o termo “mitose” como metáfora para nomear o evento resultante da multiplicação de uma célula rítmica, ou como da mudança de sentido, da introdução de novos instrumentos e elementos à uma célula rítmica podem surgir novos organismos, ou eventos.
O emprego dos ritmos Afro-Brasileiros como ambientadores da literatura de Shakespeare se deve pelo fato de possuírem um caráter baseado nos arquétipos humanos e suas características, emoções e demais aspectos psicológicos. Os “toques” percussivos nos rituais Afro-Brasileiros vão muito além de sustentar o ritmo, embora possuindo uma célula constante como base para as cantigas, alguns aspectos como dinâmica, andamento e apogiaturas sutis vão mudando de acordo com o teor e momento da cantiga. Essas alterações nos aspectos rítmicos, no estudo das Mitoses, são fundamentais para ilustrar o teor dos sonetos de Shakespeare.
Em contraposição à grande parte das doutrinas religiosas, a mitologia Afro-Brasileira é fundamentada, entre outros aspectos, nos arquétipos humanos e não numa condição imaculada, mais notoriamente representada no Cristianismo. Os Orixás, assim como os humanos, possuem um comportamento emocional baseado em sentimentos como amor, respeito e em algumas vezes, pertencimento – quando ego está acima do bem comum nas relações interpessoais, aspecto comum à grande parte da literatura mundana, incluindo os sonetos de Shakespeare. A partir deste paralelo, através da música, poesia e filosofia, é desenhada a interseção entre estas duas linguagens.
O estudo é denominado “Evento” devido ao seu processo de investigação, cujo objetivo principal é demonstrar algumas das infinitas perspectivas do encontro em questão, que se diferenciam umas das outras pelas formas de execução e pelos elementos utilizados em cada uma dessas perspectivas.
“These musical experiments defamiliarise Shakespeare in powerfully suggestive, sometimes disturbing ways which linger in the mind and memory.” _Professor Ewan Fernie, The Shakespeare Institute, University of Birmingham /UK
Eventos publicados:
Pancreas Mitose (2016)
Primeiro registro da pesquisa, um CD com edição limitada lançado pelo selo alemão Bärwaldkeller Editionen.
Trata-se de uma perspectiva do evento onde encontramos o maior número de “partículas subatômicas”. São observados aqui: voz, piano, violão e diferentes instrumentos de percussão, principalmente surdo e atabaque. Este último se caracteriza como instrumento central nos cultos afro-brasileiros.
Aspectos rítmicos, melódicos e harmônicos são utilizados de forma mais racionalizada e menos baseada no improviso do que na Primeira Mitose, resultando em 6 peças que apresentam estruturas e linguagens consideravelmente distintas.
https://mitosemusic.bandcamp.com/releases
http://baerwaldkeller.de/BWK001.html
Primeira Mitose (2020)
“Primeira Mitose” dá continuidade ao estudo sonoro do músico Rossano (MG) denominado “Evento: Mitose”, que apresenta perspectivas do encontro dos ritmos e Mitologia Afro-Brasileiros com a literatura de William Shakespeare.
Segundo registro da pesquisa, com lançamento digital pelo selo brasileiro Brava.
Releituras de 5 dos 6 sonetos do ‘Pancreas Mitose’, mais uma peça representando um aspecto do caráter do Orixá denominado Obalúwàiyé (também conhecido como Onilewá, o Senhor da Terra). Aqui observados sob outra perspectiva, estes sonetos trazem elementos como voz, pássaros e insetos sustentando a harmonia e melodia.
Os ritmos, oriundos da Umbanda e Candomblé, desempenham a mesma função original de quando em cerimônias afro-brasileiras, ou seja, conduzir e ambientar o teor das histórias contadas – aqui especificamente os sonetos de Shakespeare. Essa proposição feita pelos ritmos afro-brasileiros através do agogô e surdo sugere a forma como os sonetos são interpretados, influindo diretamente em seus aspectos percussivos, inclusive na articulação dos fonemas e divisão das palavras e frases nos sonetos.
Sobre o músico:
Nascido em Minas Gerais, Rossano é músico profissional desde 1991, atuando tanto na área da educação e pesquisa quanto na criação artística.
Em 1995 desenvolveu com parceiros em Belo Horizonte /MG o projeto Disfunção, do qual se originou o grupo pexbaA (final dos 90/2010), que tinha como proposta promover a interação entre diversas linguagens e formas musicais possíveis, de maneira aleatória, que se aproximava ao dadaísmo pelo largo uso da onomatopéia na utilização da voz e também como interseção e movimento livre dos sons.
O contato de Rossano com os ritmos afro-brasileiros se deu desde seu 1º mês de idade, através do seu avô, que organizava os Congados no Quilombo de Sapé (uma das 4 as comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares em Brumadinho /MG) e o levava anualmente à esta comunidade até seus 12 anos.
Posteriormente, em um dos terreros de Candomblé que Rossano frequentava, foi convidado a tocar atabaque e assim o fez por mais de 2 anos, até que o pai de santo da casa falecesse.
Dos batuques iniciais até suas as experimentações sonoras nos anos 90, os ritmos afro-brasileiros sempre estiveram presentes nos seus projetos, e agora estes estudos são apresentados em maior profundidade com as Mitoses.