Nelson Pinton e Marco Scarassatti ‘A lenda da pianista enterrada viva’

Nelson Pinton e Marco Scarassatti ‘A lenda da pianista enterrada viva’ digital, 2022 brv#30

Nelson Pinton e Marco Scarassatti ‘A lenda da pianista enterrada viva’
digital, 2022
brv#30

Nelson Pinton – piano, piano preparado, eletrônicos
Marco Scarassatti – piano, tampo do piano, máquina de escrever, viola de cocho, trompa Kirk Roland (instrumento de fabricação própria)
Todas as composições por Nelson Pinton e Marco Scarassatti
Gravado no Vitrola Digital Studio, Campinas /SP entre 2017 e 2019
Mixagem e masterização por Nelson Pinton
Design e arte da capa por Bruno Nunes
Lançado pela Brava Edições em Maio de 2022

‘A lenda da pianista enterrada viva’ é um álbum de Nelson Pinton e Marco Scarassatti, que tocam juntos desde o começo dos anos 2000, a partir do trio de música experimental Sonax que criaram conjuntamente com Marcelo Bomfim.

Quando Marco Scarassatti e Nelson Pinton começaram a desenvolver um projeto em duo, numa das primeiras conversas e improvisações chegaram a uma peça onde Marco tocava o tampo do piano, com o atrito dos dedos na madeira, enquanto Nelson improvisava nas cordas e teclado do piano.

Ao conversarem sobre a gravação, Marco lembrou de uma história contada por sua avó, que dizia que uma parente sua teria acordado durante seu próprio velório. A essa história somou-se algumas outras, lembradas pelo Nelson, de caixões que quando abertos revelam ranhuras na parte interna do seu tampo.

Desse imaginário surgiu a ideia de produzirem um álbum que, de alguma forma, envolve literatura, improvisação, cinema, poesia e experimentação, construído entre o humor e algo bizarro, seja na política, seja na relação com a morte, com uma certa narratividade a partir da abstração musical. A invenção de uma lenda em que uma pianista teria sido enterrada viva, como tema do álbum, trouxe o piano para uma centralidade de onde orbitaram outros instrumentos, como a viola de cocho, instrumentos inventados, objetos, além das manipulações eletroacústicas.

  1. A lenda da pianista enterrada viva
    Nelson Pinton – piano; Marco Scarassatti – tampo do piano
  2. Eu escrevo de um país distante *
    Nelson Pinton – piano e eletrônicos; Marco Scarassatti – piano e máquina de escrever
    *dedicado a Henri Michaux
  3. Quando morre vira caniço **
    Nelson Pinton – piano; Marco Scarassatti – viola de cocho
    **dedicado a Saci
  4. Are you there?
    Nelson Pinton – eletrônicos; Marco Scarassatti – viola de cocho
  5. Tempo e memória
    Nelson Pinton – piano; Marco Scarassatti – trompa Kirk Roland
  6. Distopia em transe ***
    Nelson Pinton – piano; Marco Scarassatti – trompa Kirk roland
    ***dedicado a Glauber Rocha
  7. We talk with the Spirits ****
    Nelson Pinton – piano; Marco Scarassatti – trompa Kirk Roland
    ****dedicado a Rahsaan Roland Kirk
  8. Pianos pastores
    Nelson Pinton – piano; Marco Scarassatti – piano
    dedicado a Murilo Mendes
  9. A câmara
    Nelson Pinton – piano preparado; Marco Scarassatti – viola de cocho

‘O piano é como que o guardião do temperamento ocidental. Todos os demais instrumentos lhe pedem para “dar tecla” a fim de se afinarem. O que este álbum tem de diferente é o fato de associar o piano – um piano que, decididamente, não soa como os concertantes (há salas de espectáculo que se recusam, ainda hoje, a programar projetos que impliquem preparações das cordas dos seus Steinways) – a uma miríade de recursos de áudio dificilmente identificáveis que não só contrapõem ruído a “tempero”, como o engolem nas suas lógicas (sonoras, estruturais, processuais). Quando, em “Quando morre vira caniço”, ouvimos um cordofone, algo de reconhecível e imediatamente visualizável, o piano já está desalinhado com a sua própria condição… digamos… pianística, aquela que foi definida pela história e pela linguagem que desenvolveu, mas também à que diz respeito às conversões “hiper-piano” a partir de Henry Cowell e John Cage. Por que? Porque os parâmetros definidos são outros que não os do continuum conservatorial de que saíram Cowell e Cage (mesmo que em ruptura, como por exemplo a do segundo com a “ditadura da harmonia” de Beethoven).

Ao chegarmos a “Are you there”, com o dito piano já desaparecido, o que encontramos é uma viola de cocho (um dos mais identitários instrumentos tradicionais do Brasil), primeiro com vagas alusões ao blues e depois com abordagens texturais em entrechoque com uma eletrônica que não é propriamente a da linhagem acadêmica (a dos computadores e sintetizadores gigantes das universidades norte-americanas da década de 1950), no que passa por um “statement” sobre a natureza do experimentalismo como uma corrente da música popular, porque bem longe de qualquer emolduramento “erudito” ou de “alta cultura”. Aqui, a ausência do piano é, já por si, uma presença. E claro que este volta logo em seguida, para um outro manifesto em que se transfigura por completo a ideia de um duo de jazz entre saxofonista ou trompetista e pianista. O título não podia ser mais alusivo: “Tempo e memória”, um e outra criando uma paradoxal ambivalência entre desvanecimento e reminiscência.

A música desta dupla é feita de fumaças, mas estas fumaças não tapam, deixam antes perceber, nas nesgas em que entra a luz, tudo o que é patrimonial no entendimento que hoje temos da música ao nível planetário, ainda que com perspectiva territorial, a do espaço brasileiro, num “glocalismo” (porque global e local ao mesmo tempo) que nos deixa permanentemente intrigados. É isso que torna este disco tão singular e tão importante de ouvir.’

_Rui Eduardo Paes